quinta-feira, 27 de junho de 2013

AULA DE MARILENA CHAUI SOBRE AS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO DE 2013

Eu tenho tanto a dizer, mas tanto se disse.

E do tanto que já se disse e do tanto que eu já li, escolhi este texto da grandiosa Marilena Chauí para participar do debate sobre as recentes manifestações. O texto é longo, mas é preciso mesmo muitas palavras, dedicação e atenção para tratar o assunto com o respeito e o cuidado que ele merece (e precisa).


As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo
por Marilena Chaui, na revista Teoria e Debate


Marilena Chaui: Filósofa e Professora de Filosofia


Observações preliminares
O que segue não são reflexões sobre todas as manifestações ocorridas no país, mas focalizam principalmente as ocorridas na cidade de São Paulo, embora algumas palavras de ordem e algumas atitudes tenham sido comuns às manifestações de outras cidades (a forma da convocação, a questão da tarifa do transporte coletivo como ponto de partida, a desconfiança com relação à institucionalidade política como ponto de chegada) bem como o tratamento dado a elas pelos meios de comunicação (condenação inicial e celebração final, com criminalização dos “vândalos”) permitam algumas considerações mais gerais a título de conclusão.

O estopim das manifestações paulistanas foi o aumento da tarifa do transporte público e a ação contestatória da esquerda com o Movimento Passe Livre (MPL), cuja existência data de 2005 e é composto por militantes de partidos de esquerda. Em sua reivindicação especifica, o movimento foi vitorioso sob dois aspectos: 1. conseguiu a redução da tarifa; 2. definiu a questão do transporte público no plano dos direitos dos cidadãos e, portanto, afirmou o núcleo da prática democrática, qual seja, a criação e defesa de direitos por intermédio da explicitação (e não do ocultamento) dos conflitos sociais e políticos.

O inferno urbano

Não foram poucos os que, pelos meios de comunicação, exprimiram sua perplexidade diante das manifestações de junho de 2013: de onde vieram e por que vieram se os grandes problemas que sempre atormentaram o país (desemprego, inflação, violência urbana e no campo) estão com soluções bem encaminhadas e reina a estabilidade política? As perguntas são justas, mas a perplexidade, não, desde que  voltemos nosso olhar para um ponto que foi sempre o foco dos movimentos populares: a situação da vida urbana nas grandes metrópoles brasileiras.
Quais os traços mais marcantes da cidade de São Paulo nos últimos anos e que, sob certos aspectos, podem ser generalizados para as demais? Resumidamente, podemos dizer que são os seguintes:
– explosão do uso do automóvel individual: a mobilidade urbana se tornou quase impossível, ao mesmo tempo em que a cidade se estrutura com um sistema viário destinado aos carros individuais em detrimento do transporte coletivo, mas nem mesmo esse sistema é capaz de resolver o problema;
– explosão imobiliária com os grandes condomínios (verticais e horizontais) e shopping centers, que produzem uma densidade demográfica praticamente incontrolável além de não contar com uma redes de água, eletricidade e esgoto, os problemas sendo evidentes, por exemplo, na ocasião de chuvas;
– aumento da exclusão social e da desigualdade com a expulsão dos moradores das regiões favorecidas pelas grandes especulações imobiliárias e o conseqüente aumento das periferias carentes e de sua crescente distância com relação aos locais de trabalho, educação e serviços de saúde. (No caso de São Paulo, como aponta Hermínia Maricatto, deu-se a ocupação das regiões de mananciais, pondo em risco a saúde de toda a população); em resumo: degradação da vida cotidiana das camadas mais pobres da cidade;
– o transporte coletivo indecente, indigno e mortífero.  No caso de São Paulo, sabe-se que o programa do metrô previa a entrega de 450 k de vias até 1990; de fato, até 2013, o governo estadual apresenta 90 k. Além disso, a frota de trens metroviários não foi ampliada, está envelhecida e mal conservada; além da insuficiência quantitativa para atender a demanda, há atrasos constantes por quebra de trens e dos instrumentos de controle das operações. O mesmo pode ser dito dos trens da CPTU, que também são de responsabilidade do governo estadual.
No caso do transporte por ônibus, sob responsabilidade municipal, um cartel domina completamente o setor sem prestar contas a ninguém: os ônibus são feitos com carrocerias destinadas a caminhões, portanto, feitos para transportar coisas e não pessoas; as frotas estão envelhecidas e quantitativamente defasadas com relação às necessidades da população, sobretudo as das periferias da cidade; as linhas são extremamente longas porque isso as torna mais lucrativas, de maneira que os passageiros são obrigados a trajetos absurdos, gastando horas para ir ao trabalho, às escolas, aos serviços de saúde e voltar para casa; não há linhas conectando pontos do centro da cidade nem linhas inter-bairros, de maneira que o uso do automóvel individual se torna quase inevitável para trajetos menores.
Em resumo: definidas e orientadas pelos imperativos dos interesses privados, as montadoras de veículos, empreiteiras da construção civil e empresas de transporte coletivo dominam a cidade sem assumir qualquer responsabilidade pública, impondo o que chamo de inferno urbano.

2. As manifestações paulistanas

A tradição de lutas
Recordando: A cidade de São Paulo (como várias das grandes cidades brasileiras) tem uma tradição histórica de revoltas populares contra as péssimas condições do transporte coletivo, isto é, a tradição do quebra-quebra quando, desesperados e enfurecidos, os cidadãos quebram e incendeiam ônibus e trens (à maneira do que faziam os operários no início da Segunda Revolução Industrial, quando usavam os tamancos de madeira – em francês, os sabots – para quebrar as máquinas – donde a palavra francesa sabotage, sabotagem). Entretanto, não foi este o caminho tomado pelas manifestações atuais e valeria a pena indagar por que. Talvez porque, vindo da esquerda, o MPL politiza explicitamente a contestação, em vez de politiza-la simbolicamente, como faz o quebra-quebra.
Recordando: Nas décadas de 1970 a 1990, as organizações de classe (sindicatos, associações, entidades) e os movimentos sociais e populares tiveram um papel político decisivo na implantação da democracia no Brasil pelos seguintes motivos:
1. introdução da idéia de direitos sociais, econômicos e culturais para além dos direitos civis liberais;
2. afirmação da capacidade auto-organizativa da sociedade;
3. introdução da prática da democracia participativa como condição da democracia representativa a ser efetivada pelos partidos políticos. Numa palavra: sindicatos, associações, entidades, movimentos sociais e movimentos populares eram políticos, valorizavam a política, propunham mudanças políticas e rumaram para a criação de partidos políticos como mediadores institucionais de suas demandas.
Isso quase desapareceu da cena histórica como efeito do neoliberalismo, que produziu:
1. fragmentação, terceirização e precarização do trabalho (tanto industrial como de serviços) dispersando a classe trabalhadora, que se vê diante do risco da perda de seus referenciais de identidade e de luta;
2. refluxo dos movimentos sociais e populares e sua substituição pelas ONGs, cuja lógica é distinta daquela que rege os movimentos sociais;
3. surgimento de uma nova classe trabalhadora heterogênea, fragmentada, ainda desorganizada e que por isso ainda não tem suas próprias formas de luta e não se apresenta no espaço público e que por isso mesmo é atraída e devorada por ideologias individualistas como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a ideologia do “empreendedorismo” (da classe média), que estimulam a competição, o isolamento e o conflito inter-pessoal, quebrando formas anteriores de sociabilidade solidária e de luta coletiva.
Erguendo-se contra os efeitos do inferno urbano, as manifestações guardaram da tradição dos movimentos sociais e populares a organização horizontal, sem distinção hierárquica entre dirigentes e dirigidos. Mas, diversamente dos movimentos sociais e populares,  tiveram uma forma de convocação que as transformou num movimento de massa, com milhares de manifestantes nas ruas.

O pensamento mágico

A convocação foi feita por meio das redes sociais. Apesar da celebração  desse tipo de convocação, que derruba o monopólio dos meios de comunicação de massa, entretanto é preciso mencionar alguns problemas postos pelo uso dessas redes, que possui algumas características que o aproximam dos procedimentos da midia:

a. é indiferenciada: poderia ser para um show da Madonna, para uma maratona esportiva, etc. e calhou ser por causa da tarifa do transporte público;

b. tem a forma de um evento, ou seja, é pontual, sem passado, sem futuro e sem saldo organizativo porque, embora tenha partido de um movimento social (o MPL), à medida que cresceu passou á recusa gradativa da estrutura de um movimento social para se tornar um espetáculo de massa. (Dois exemplos confirmam isso: a ocupação de Wall Street pelos jovens de Nova York e que, antes de se dissolver, se tornou um ponto de atração turística para os que visitavam a cidade; e o caso do Egito, mais triste, pois com o fato das manifestações permanecerem como eventos e não se tornarem uma forma de auto-organização política da sociedade, deram ocasião para que os poderes existentes passassem de uma ditadura para outra);

c. assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários e, portanto, não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, deste ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa.
A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a idéia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação;

d. a recusa das mediações institucionais indica que estamos diante de uma ação própria da sociedade de massa, portanto,  indiferente à determinação de classe social; ou seja, no caso presente, ao se apresentar como uma ação da juventude, o movimento  assume a aparência de que o  universo dos manifestantes é homogêneo ou de massa, ainda que, efetivamente, seja heterogêneo do ponto de vista econômico, social e político, bastando lembrar que as manifestações das periferias não foram apenas de “juventude” nem de classe média, mas de jovens, adultos, crianças e idosos da classe trabalhadora.
No ponto de chegada, as manifestações introduziram o tema da corrupção política e a recusa dos partidos políticos. Sabemos que o MPL é  constituído por militantes de vários partidos de esquerda e, para assegurar a unidade do movimento, evitou a referência aos partidos de origem.
Por isso foi às ruas sem definir-se como expressão de partidos políticos e, em São Paulo, quando, na comemoração da vitória, os militantes partidários compareceram às ruas foram execrados, espancados, e expulsos como oportunistas – sofreram repressão violenta por parte da massa. Ou seja, alguns manifestantes praticaram sobre outros a violência que condenaram na polícia.

A crítica às instituições políticas não é infundada, mas possui base concreta:
a. no plano conjuntural: o inferno urbano é, efetivamente, responsabilidade dos partidos políticos governantes;
b. no plano estrutural: no Brasil, sociedade autoritária e excludente, os partidos políticos tendem a ser clubes privados de oligarquias locais, que usam o público para seus interesses privados; a qualidade dos legislativos nos três níveis é a mais baixa possível e a corrupção é estrutural; como consequência,  a relação de representação não se concretiza porque vigoram relações de favor, clientela, tutela e cooptação;
c. a crítica ao PT:  de ter abandonado a relação com aquilo que determinou seu nascimento e crescimento, isto é, o campo das lutas sociais auto-organizadas e ter-se transformado numa máquina burocrática e eleitoral (como têm dito e escrito muitos militantes ao longo dos últimos 20 anos).
Isso, porém, embora explique a recusa, não significa que esta tenha sido motivada pela clara compreensão do problema por parte dos manifestantes. De fato, a maioria deles não exprime em suas falas uma análise das causas desse modo de funcionamento dos partidos políticos, qual seja, a estrutura autoritária da sociedade brasileira, de um lado, e, de outro, o sistema político-partidário montado pelos casuímos da ditadura. Em lugar de lutar por uma reforma política, boa parte dos manifestantes recusa a legitimidade do partido político como instituição republicana e democrática.

Assim, sob este aspecto, apesar do uso das redes sociais e da crítica aos meios de comunicação, a maioria dos manifestantes aderiu à mensagem ideológica difundida anos a fio pelos meios de comunicação de que os partidos são corruptos por essência.
Como se sabe, essa posição dos meios de comunicação tem a finalidade de lhes conferir o monopólio das funções do espaço público, como se não fossem empresas  capitalistas movidas por interesses privados.
Dessa maneira, a recusa dos meios de comunicação e as críticas a eles endereçadas pelos manifestantes não impediram que grande parte deles aderisse à perspectiva da classe média conservadora difundida pela mídia a respeito da ética.

De fato, a maioria dos manifestantes, reproduzindo a linguagem midiática, falou de ética na política (ou seja, a transposição dos valores do espaço privado para o espaço público), quando, na verdade, se trataria de afirmar a ética da política (isto é, valores propriamente públicos), ética que não depende das virtudes morais das pessoas privadas dos políticos e sim da qualidade das instituições públicas enquanto instituições republicanas.
A ética da política, no nosso caso, depende de uma profunda reforma política que crie instituições democráticas republicanas e destrua de uma vez por todas a estrutura deixada pela ditadura, que força os partidos políticos a coalizões absurdas se quiserem governar, coalizões que comprometem o sentido e a finalidade de seus programas e abrem as comportas para a corrupção.

Em lugar da ideologia conservadora e midiática de que, por definição e por essência, a política é corrupta, trata-se de promover uma prática inovadora capaz de criar instituições públicas que impeçam a corrupção, garantam a participação, a representação e o controle dos interesses públicos e dos direitos pelos cidadãos. Numa palavra, uma invenção democrática.

Ora, ao entrar em cena o pensamento mágico, os manifestantes deixam de lado que, até que uma nova forma da política seja criada num futuro distante quando, talvez, a política se realizará sem partidos, por enquanto, numa república democrática (ao contrário de uma ditadura) ninguém governa sem um partido, pois é este que cria e prepara quadros para as funções governamentais para concretização dos objetivos e das metas dos governantes eleitos.

Bastaria que os manifestantes se informassem sobre o governo Collor para entender isso: Collor partiu das mesmas afirmações feitas por uma parte dos manifestantes (partido político é coisa de “marajá” e é corrupto) e se apresentou como um homem sem partido. Resultado: a) não teve quadros para montar o governo, nem diretrizes e metas coerentes e b) deu feição autocrática ao governo, isto é, “o governo sou eu”. Deu no que deu.
Além disso, parte dos manifestantes está adotando a posição ideológica típica da classe média, que aspira por governos sem mediações institucionais e, portanto, ditatoriais. Eis porque surge a afirmação de muitos manifestantes, enrolados na bandeira nacional, de que “meu partido é meu país”, ignorando, talvez, que essa foi uma das afirmações fundamentais do nazismo contra os partidos políticos.

Assim, em lugar de inventar uma nova política, de ir rumo a uma invenção democrática, o pensamento mágico de grande parte dos manifestantes se ergueu contra a política, reduzida à figura da corrupção. Historicamente, sabemos onde isso foi dar.
E por isso não nos devem surpreender, ainda que devam nos alarmar, as imagens de jovens militantes de partidos e movimentos sociais de esquerda espancados e ensangüentados durante a manifestação de comemoração da vitória do MPL.
Já vimos essas imagens na Itália dos anos 1920, na Alemanha dos anos 1930 e no Brasil dos anos 1960-1970.

Conclusão provisória
Do ponto de vista simbólico, as manifestações possuem um sentido importante que contrabalança os problemas aqui mencionados.

Não se trata, como se ouviu dizer nos meios de comunicação, que finalmente os jovens abandonaram a “bolha” do condomínio e do shopping center e decidiram ocupar as ruas (já podemos prever o número de novelas e mini-séries que usarão essa idéia para incrementar o programa High School Brasil, da Rede Globo).

Simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas afirmações explícitas contra a política, os manifestantes realizaram um evento político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos poderes executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do poder legislativo nos três níveis.
Praticando a tradição do humor corrosivo que percorre as ruas, modificaram o sentido corriqueiro das palavras e do discurso conservador por meio da inversão das significações e da irreverência, indicaram uma nova possibilidade de práxis política, uma brecha para repensar o poder, como escreveu um filósofo político sobre os acontecimentos de maio de 1968 na Europa.
Justamente porque uma nova possibilidade política está aberta, algumas observações merecem ser feitas para que fiquemos alertas aos riscos de apropriação e destruição dessa possibilidade pela direita conservadora e reacionária.

Comecemos por uma obviedade: como as manifestações são de massa (de juventude, como propala a mídia) e não aparecem em sua determinação de classe social, que, entretanto, é clara na composição social das manifestações das periferias paulistanas, é preciso lembrar que uma parte dos manifestantes não vive nas periferias das cidades, não experimenta a violência do cotidiano experimentada pela outra parte dos manifestantes.
Com isso, podemos fazer algumas indagações.

QUESTÃO FUNDAMENTAL:
Por exemplo: os jovens manifestantes de classe média que vivem nos condomínios têm idéia de que suas famílias também são responsáveis pelo inferno urbano (o aumento da densidade demográfica dos bairros e a expulsão dos moradores populares para as periferias distantes e carentes)? Os jovens manifestantes de classe média que, no dia em que fizeram 18 anos, ganharam de presente um automóvel (ou estão na expectativa do presente quando completarem essa idade), têm idéia de que também são responsáveis pelo inferno urbano? Não é paradoxal, então, que se ponham a lutar contra aquilo que é resultado de sua própria ação (isto é, de suas famílias), mas atribuindo tudo isso à política corrupta, como é típico da classe média?

Essas indagações não são gratuitas nem expressão de má-vontade a respeito das manifestações de 2013. Elas têm um motivo político e um lastro histórico.

Motivo político: assinalamos anteriormente o risco de apropriação das manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. Só será possível evitar esse risco se os jovens manifestantes levarem em conta algumas perguntas:
1. estão dispostos a lutar contra as ações que causam o inferno urbano e, portanto, enfrentar pra valer o poder do capital de montadoras, empreiteiras e cartéis de transporte que, como todo sabem não se relacionam  pacificamente (para dizer o mínimo) com demandas sociais?
2. estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais?
3. estão dispostos a se engajar na luta pela reforma política, a fim de inventar uma nova política, libertária, democrática, republicana, participativa?
4. estão dispostos a não reduzir sua participação a um evento pontual e efêmero e a não se deixar seduzir pela imagem que deles querem produzir os meios de comunicação?

Lastro histórico: quando Luiza Erundina, partindo das demandas dos movimentos populares e dos compromissos com a justiça social, propôs a Tarifa Zero para o transporte público de São Paulo, ela explicou à sociedade que a tarifa precisava ser subsidiada pela Prefeitura e que ela não faria o subsídio implicar em cortes nos orçamentos de educação, saúde, moradia e assistência social, isto é, dos programas sociais prioritários de seu governo.
Antes de propor a Tarifa Zero, ela aumentou em 500% a frota da CMTC (explicação para os jovens: CMTC era a antiga empresa municipal de transporte) e forçou os empresários privados a renovar sua frota.
Depois disso, em inúmeras audiências públicas, ela apresentou todos os dados e planilhas da CMTC e obrigou os empresários das companhias privadas de transporte coletivo a fazer o mesmo, de maneira que a sociedade ficou plenamente informada quanto aos recursos que seriam necessários para o subsídio.
Ela propôs, então, que o subsídio viesse de uma mudança tributária: o IPTU progressivo, isto é, o imposto predial seria aumentado para os imóveis dos mais ricos, que contribuiriam para o subsídio juntamente com outros recursos da Prefeitura.
Na medida que os mais ricos, como pessoas privadas, têm serviçais domésticos que usam o transporte público, e, como empresários, têm funcionários usuários desse mesmo transporte, uma forma de realizar a transferência de renda, que é base da justiça social, seria exatamente fazer com que uma parte do subsídio viesse do novo IPTU.
Os jovens manifestantes de hoje desconhecem o que se passou: comerciantes fecharam ruas inteiras, empresários ameaçaram lockout das empresas, nos “bairros nobres” foram feitas  manifestações contra o “totalitarismo comunista” da prefeita e os poderosos da cidade “negociaram” com os vereadores a não aprovação do projeto de lei.
A Tarifa Zero não foi implantada. Discutida na forma de democracia participativa, apresentada com lisura e ética política, sem qualquer mancha possível de corrupção, a proposta foi rejeitada.

Esse lastro histórico mostra o limite do pensamento mágico, pois não basta ausência de corrupção, como imaginam os manifestantes, para que tudo aconteça imediatamente da melhor maneira e como se deseja.
Cabe uma última observação: se não levarem em consideração a divisão social das classes, isto é, os conflitos de interesses e de poderes econômico-sociais na sociedade, os manifestantes não compreenderão o campo econômico-político no qual estão se movendo quando imaginam estar agindo fora da política e contra ela.
Entre os vários riscos dessa imaginação, convém lembrar aos manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia política e se não a defenderem com muita garra, poderão, no Brasil, colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência.



(RETIRADO DO SITE VI O MUNDO, NO ENDEREÇO:

segunda-feira, 10 de junho de 2013

O silêncio e sua aparência



Eu escrevia tão bem aos vinte anos. Todos comentavam e eu mesma sentia certo orgulho de minha habilidade com as palavras. E tudo era motivo para páginas repletas de parágrafos poéticos, agressivos, nostálgicos, imaginativos. As brigas no namoro geravam verdadeiros romances de cavalaria ou cantigas de amor perdido, quando não, verdadeiros tratados para provar que eu estava certa. Eu já via que a carreia acadêmica ia aparecer no meu caminho.

De repente, não mais que de repente, a vida foi ficando tão real e o papel voou.

Tanta coisa pra viver e resolver. Aí eu entre numas de me contentar com as palavras dos outros, meu ídolos queridos: Chico, Raul, Gil, a princípio. Depois a  coisa foi ficando séria. Álvaro de Campos, Adélia Prado, Nelson Rodrigues, Mário Filho, Shakespeare, Mafessoli, Foucault e a paulada final: Nietzsche. Aí, meu amigo, quem mais escreve?

E também, acabei aos poucos me submetendo a um silêncio que no momento me parecia mais produtivo, me evitava brigas e desgastes e me forçava a constantes autocríticas. E eu segui dos 25 aos 38 (data atual) acreditando que estava me tornando uma pessoa melhor.

Ledo engano.

Quando vem a enxurrada, ela vem suja, lama pura, fedida e feroz.

Agora, talvez como muitos da minha idade que não levam esse assunto para a mesa do bar, porque lá falamos de nossas teses, nossas compras, nossas posturas sobre o governo, sobre cultura, sobre educação, sobre consumo consciente e ecologia, deparo-me com o doloroso silêncio e as paredes brancas de casa. Pura bosta!

Meu corpo, linda casa que me abriga, fez o que eu não fazia há quase 15 anos: Deu um berro. E gritou alto e em bom tom. E eu tive que escutar. Traduzo aos poucos as confusas palavras que ele me fala e escreve em mim.

E uma certa 'leseira' que eu nunca tive, pois sempre fui por demais correta, esperta, inteligente e sensata, me dá uma sensação de estar perdida e eu curto muito. Da tristeza que me acomete às vezes, não gosto muito. Gosto da confusão na memória, do riso besta do nada, da picardia na conclusão de certas conversas, que eu já tinha mas parece que tá maior. Só fico assim assim quando a vida me parece sem sentido, mas pra ser sincera, ela sempre me pareceu, eu é que nunca quis assumir.

Os amigos são o melhor remédio. Os holopáticos ajudam, mas mesmo ao celular, a voz de quem amo é quem me acalma. E são tantos e tão diversos que me amam que até fico comovida.

Bom, é só isso mesmo. Tô ouvindo Raul Seixas que eu não sei se melhora ou piora, mas eu gosto muito. O homem é pura palavra.

E fica o desabafo, minha volta às palavras. Quem sabe elas não me acolhem de novo?




Leia também: Minha Partida Vida.

domingo, 12 de maio de 2013

ARNALDO ANTUNES NO FESTIVAL DA JUVENTUDE: A Fúria de um jovem Sr. Titã

Arnaldo aquece a inspirada e fria noite conquistense


Ele é mesmo um Titã. E dos grandes.

Titãs são aqueles irmãos dos deuses, deuses eles mesmos, parentes dos Ciclopes e Hecatônquiros, inimigos dos deuses do Olimpo, filhos de Urano e Gaia que ajudaram a povoar a Terra, segundo a Mitologia Grega.

Não tem a empáfia nem a arrogância dos deuses, mas tem seus poderes e sua força. E que força. Com 52 anos o cabra não parava no palco, pulando como se estivesse em plena década de 80. E que delícia foi passear pelo seu digníssimo repertório, com canções novas e antigas, ligadas por uma delicada relação com a ideia de casa. Casa abrigo, casa corpo, casa mundo.

E foi com a sabedoria não de um ser mitológico, mas de um ser humano maduro, artista sensível, poeta de olhar atento e delicado para o mundo, que ele abrilhantou o sábado do FESTIVAL DA JUVENTUDE DE VITÓRIA DA CONQUISTA, tanto no bate para com um Centro de Cultura lotado quanto no belíssimo  e inesquecível show à noite na Praça Barão do Rio Branco.


Papo de Poeta - Arnaldo Antunes e Luís Galvão - 11 de Maio de 2013


Eu não estive no bate-papo, pois estava envolvida com tarefas de filha, produzindo o almoço da mamãe. Mas a família, fã, foi e adorou. É só o que posso dizer sobre a doce tarde. O encontro com o velho e eterno novo baiano Luís Galvão, foi, segundo relatos, memorável.

Mais tarde estava cansada como quem rala, mas fui ver meu querido poeta e músico por quem tenho profunda admiração e por quem me sinto tão representada sempre que ouço suas poesias em forma de canção. Fui e foi uma linda noite.

Pelo show, que foi de uma beleza ímpar e também pela força que é o Festival.

Claro que fiz minha crítica no post anterior à organização, mas jamais deixe de ressaltar a importância deste evento. É visível o interesse e até mesmo a surpresa que os artistas expressam quando vêm para os eventos culturais de Vitória da Conquista. Por mais que haja muito a fazer, e sempre haverá. Por mais que a música ainda seja o forte da gestão cultural. Mesmo assim, é muito importante reconhecer que nossa cidade tem uma produção cultural incrível e que esforça-se constantemente - com muito sucesso - para garantir ações ligadas á cultura em seu sentido mais amplo, para a população.

Quem conhece outras cidades sabe disso. Eu que trabalho em Jequié vejo a indiscutível diferença do trato que se dá à cultura lá e aqui. Meu marido que é de Alagoinhas e trabalha em Catu também não se cansa de comparar os investimentos em cultura lá e aqui e não digo apenas investimentos financeiros, mas investimentos no sentido de não medir esforços para realizar eventos na contra mão do que acontece na maioria esmagadora das cidades brasileiras.

Não estou acompanhando a muitas atividades, porque afinal de contas já não sou mais tão jovem e o cansaço me vence com frequência. Mas, mãe de adolescente, confesso que fico muito otimista em ver que a juventude de Conquista tem ótimas perspectivas.

Hoje, ela está lá, no show e eu aqui no blog. Diferença de geração. Não um conflito de gerações, apenas o exercício de suas diferenças.

Um grande Salve a Arnaldo Antunes esse Hecatônquiro de muitas cabeças e infinitos braços.

Um Salve à Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista e aos demais realizadores deste lindo e importante evento.

Que sigamos construindo sempre, errando às vezes e desistindo nunca. Exercitando nossos direitos, nossas críticas, nossas belezas. Disso deve ser feito o caminho entre a juventude e a maturidade.

Que venha o São João, a festa mais linda do mundo!

Boa semana para todos.

Leia mais sobre o show em:

http://www.pmvc.ba.gov.br/v2/noticias/arnaldo-antunes-apresenta-grandes-sucessos-de-sua-carreira-no-festival-da-juventude/


sexta-feira, 10 de maio de 2013

Cidadania pra quem mesmo? Abertura do II FESTIVAL DA JUVENTUDE DE VITÓRIA DA CONQUISTA


Sim, foi lindo. Ariano Suassuna é Rei e em qualquer circunstância será sempre um evento mágico estar diante dele.

Sim, o FESTIVAL DA JUVENTUDE DE VITÓRIA DA CONQUISTA é um evento maravilhoso, importantíssimo, com uma programação bem estruturada e diversificada.

Sim, eu poderia escrever um post sobre as vantagens e belezas do Festival e de sua palestra de abertura, mas, infelizmente o que me motiva neste exato momento é a evidência da contradição.

A contradição de, num festival onde se supõe que o tema é o respeito e a cidadania, ver centenas de pessoas comuns serem desrespeitadas sem nenhum constrangimento por parte dos organizadores do evento.

Ora, tantas mesas redondas, tantas palestras, debates e oficinas provavelmente debaterão questões relacionadas aos Direitos Humanos, às noções de respeito e cidadania. No entanto, enquanto essas coisas forem apenas tema de discurso, em nada avançaremos.

Não avançaremos enquanto não se praticar cidadania e respeito ao próximo, quando ele de fato estiver próximo, pra ser mais preciso, ao seu lado, ou mais preciso ainda, à sua frente.

Pois bem, o evento, marcado para as 15h já contava com uma fiel plateia desde antes das 14h. Gente organizada e planejada que chegou cedo para se sentar num bom lugar, para ter uma boa visão e ouvir o bom velhinho (não, não era o Papai Noel) de perto. Garantir alguma tranquilidade na tarde tão esperada.

O espaço escolhido é ótimo porque é grande, bem localizado e muito organizado. Mas não tem boa acústica e não tem desnível de plateia, de modo que é um horror assistir ao que se passa lá na frente. E eu adoraria entender porque o sofá onde se sentaria o palestrante estava num palquinho baixo, quase no mesmo nível das cadeiras da plateia, ou seja, apenas a primeira fileira assistiria com qualidade de visão à palestra. E como tem uma acústica ruim aquele espaço, sua arquitetura já denuncia o problema. Eu tenho certeza que a Prefeitura de Vitória da Conquista tem condições de contratar um serviço de sonorização profissional. Mas esse é assunto de outro parágrafo.

De cara, mais ou menos cinquenta cadeiras reservadas, logo na frente, para uma infinidade de celebridades e autoridades, que realmente beirava o cômico. E essas cadeiras reservadas são sempre um antipatia, porque estão bem na frente de quem chegou cedo, reservadas pra quem vai chegar tarde. Tudo bem que autoridades não podem chegar cedo, porque são importantes e tem uma agenda cheia (coisa que quem não é importante também tem, mas vamos lá). Pois que paguem o preço e se sentem onde sobrou lugar. Acho que é um princípio de justiça. É o ônus. Pessoas normais não vivem pagando o ônus de usas vidas? Que fossem lá 10 cadeiras para o Prefeito, o Reitor e um ou dois assessores, talvez eu até entendesse, mas dezenas de cadeiras reservadas, ficou realmente feio.  Mas, vamos pra frente. Ops, pra frente, não que tá reservado!!!!





Às 15h, horário marcado para começar a palestra, os organizadores do evento começaram a testar o data-show, com uma tranquilidade constrangedora, como se fosse meio dia e como se não houvesse ninguém na plateia. Aos poucos foi chegando um monte de gente lá na frente. Era gente pra lá e pra cá, fio aqui, fio acolá, microfones, câmeras e uma infinidade de 'coisas importantes' de 'gente importante'. Já ia pra mais de 15h30 quando  começam a exibir vinhetas e um vídeo sobre o festival do ano passado. 'Oba!', Pensei. 'Legal, vai começar'. Ledo engano!



16h10, eu já num estado de nervos próprio de quem estava ali havia 2 horas sentada, esperando, começo a perder a paciência.

Nenhuma, eu disse nenhuma palavra dos organizadores sobre o motivo do atraso, sobre a perspectiva de que horas começaria a palestra, nenhum pedido de desculpas.

ALOOU, SOMOS SERES HUMANOS, TÁ?

É muita contradição na abertura de um FESTIVAL DA JUVENTUDE com evidente caráter político, tratar de forma tão negligente e desrespeitosa uma plateia. Puxei uma tentativa de "COMEÇA, COMEÇA" que teve pouca repercussão.

Claro, ninguém queria ofender o mestre Suassuna. Nem eu! Jamais.

Se alguém fosse à frente, pegasse o microfone e desse alguma satisfação sobre o que estava acontecendo, a dor do atraso e da negligência seria esquecida, mas o desrespeito só piorava. Em nenhum momento se tratou com respeito quem estava ali esperando. Era como se a gente não estivesse ali.

E colocaram o vídeo de novo. Um vídeo sem qualidade de som que ninguém entendia nada e que não ajudava a acalmar quem estava ansioso para ver o que tinha ido ver: Ariano Suassuna.

Pois bem, eis que às 16h15 começa o evento. Na frente do palco, um mar de gente. E gente bem mal educada, conversadeira e meio sem-noção. Desculpa, gente, mas foi a impressão que me deu. Uma pergunta: Era tudo autoridade ou celebridade ali na frente, era? Que coisa cafona!

Aí as autoridades falaram, os artistas fizeram suas belas apresentações, mas a plateia já estava no seu limite. Pelo menos eu estava!

Suassuna mesmo, só às 17h. Tem noção? 17h horas começou a palestra marcada para as 15h.

Aí veio o show de horrores.


Deixa eu perguntar: Tem alguma disciplina nos cursos de JORNALISMO e de COMUNICAÇÃO que diz para os cinegrafistas ou fotógrafos que eles são invisíveis ou que são melhores do que as pessoas que estão na plateia?

Não só pode ser isso!

Gente, eu fui cedo pra ver Ariano Suassuna A-RI-A-NO  SU-AS-SU-NA . Mas só via as costas de meia dúzia de cinegrafistas que se chatearam quando a gente pediu para eles saírem (e não saíram, claro) É o fim da picada. Respeito nenhum, absolutamente nenhum, por quem chegou cedo, reservou seu lugar.

É tratar a gente como um nada, como bosta. O que eu acho engraçado é que quando se fala de direitos humanos e de cidadania só se pensa nas relações macro de poder - o governo e o povo (estas duas instâncias subjetivas) nunca se pensa em quem está do seu lado, uma pessoa como você, que existe de fato, que não é uma abstração ou um conceito. Povo mesmo, gente real que quer e merece respeito.

O povo invadiu a frente da plateia, claro, tá certo, ser virando como pode. Aí ninguém respeita mais ninguém! Eu fui parar sentada no chão pra poder ver Suassuna de perto.

Mas eu fui pra ver e ouvir Suassuna. É não era exatamente uma tarde preparada para estes sentidos.

Um microfone que parecia de gincana de escola fundamental. O pobre do Suassuna com aquele microfonizinho num pedestal, sem poder se mexer porque senão deixava-se de ouvir o pouco que se ouvia com o microfone. Gente o som era impossível de ouvir. Abafado, grave, sem qualidade nenhuma. Suassuna com aquela vozinha de um senhor de 85 anos de idade, fazendo sua linda palestra e metade do público sem ouvir. Meu deus que tristeza. E depois, ainda pediram para ele sair de um sofá largo e macio pra sentar numa cadeirinha minimalista... para dizer o mínimo! Constrangedor!


Ao fim da palestra, pouca gente ainda conseguia ouvir e prestar atenção às sábias palavras do mestre. Celulares e bate-papos pioraram a situação. Aos poucos foi-se concluindo a contraditória tarde da mais pura beleza e de um inacreditável show de horror.

Sou entusiasta do FESTIVAL DA JUVENTUDE, sou entusiasta do governo do PT em nossa cidade, muita gente sabe disso, inclusive por conta do conteúdo de muitos posts neste blog.

Mas, talvez a produção do evento não tenha dimensionado o que é receber Ariano Suassuna (ainda mais a essa altura do campeonato).

Talvez a produção do evento tenha que tentar funcionar a partir de novos paradigmas que estão sendo debatidos nas mesas do próprio festival. O pessoal da imprensa tem que respeitar a plateia ao vivo. É um contra senso as câmeras serem mais importantes que o público, isso não faz sentido! É um contra senso o registro do evento ser mais importante do que o evento.


Se o próprio festival não operar sob novas bases de relacionamento com as pessoas que dele fazem parte, sob novas bases do real e concreto exercício de Direitos Humanos, mudando práticas tradicionais e equivocadas de gestão, produção e cobertura, o FESTIVAL corre o riso de ser apenas uma simulação do que poderia ser de fato.

Fica o meu desabafo e minha torcida de que a gente não caia na armadilha de que o debate sobre cidadania e direitos humanos de alguma forma nos exime de praticá-los na prática (O pleonasmo é intencional!).

E não estou falando aqui do POVO subjetivo, do ponto de vista de Kant (para citar a palestra de Suassuna) mas do povo real e concreto, como a onça de Suassuna.

Falo da pessoa que está do nosso lado e que não é nada mais nada menos do que um outro exemplar de mim mesmo.

OBRIGADA, SUASSUNA, PELAS LINDAS PALAVRAS, PELA ILUSTRE E ILUMINADA PRESENÇA!

PARABÉNS PREFEITURA, PELA ESCOLHA DA PALESTRA DE ABERTURA!

VIDA LONGA AO FESTIVAL DA JUVENTUDE DE VITÓRIA DA CONQUISTA!


QUE O RESPEITO AO OUTRO SEJA UM FATO E NÃO ENXERTO DE DISCURSO!




Outas informações sobre a palestra de abertura do II FESTIVAL DA JUVENTUDE DE VITÓRIA DA CONQUISTA:

http://www.pmvc.ba.gov.br/v2/noticias/ariano-suassuna-diverte-e-ensina-o-publico-na-abertura-do-festival-da-juventude-ano-ii/

http://www.pmvc.ba.gov.br/v2/noticias/noticia-destaque/mais-de-4-mil-pessoas-estao-prestigiando-a-abertura-do-festival-da-juventude/


terça-feira, 9 de abril de 2013

Cem sentidos

É que de repente a vida ficou foi mesmo assim:

SEM SENTIDO
CEM SENTIDOS

Um cansaço mortal toma conta de minha existência e acordar de manhã parece tarefa penosa.

A internet enche o saco e é muito. É muita realidade em letrinhas miúdas.

A TV, deus me livre, as mesmas caras brancas, os cabelos lisos, o sorriso largo. Ah, que saco!

Coisas pra fazer, eu tenho aos montes. Montes, montanhas.

Marco Feliciano já azedou e tá fedendo.

O medo do rumo que as coisas parecem tomar. A consciência da importância de uma ação política efetiva, contínua e urgente se digladia com a vontade expressa de cozinhar, dormir e fazer tricô.

Será a chegada dos 40?

Será coisa minha ou o mundo tá mesmo chato pra burro?

Não sei. Sei que o sono é grande e a graça da vida, apenas nas pequeninas coisas.

É isso. Só isso.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Iauretê: Teatro de raiz, corpo e voz

A ansiedade era grande, devido à mobilização causada pelas instalações na entrada do teatro.

Uma, referendada em tradições e elementos icônicos da cultura pataxó, outra com o pé na modernidade, projetava na parede da entrada uma obra com imagens de índios transitando entre seus costumes e garrafa Pet de Coca-Cola.

O toré de entrada foi simpático, mas a adesão do público, tímida. Os músicos, empunhando flauta, tambor e vozes, entoavam belíssimos cantos tribais. Os mestre de cerimônia, já nossos conhecidos, estavam a caráter (ou quase!) e divertiam o público que chegava timidamente.
Maria Janaína e seu canto - Foto: Aldren Lincoln

Lá dentro, um belo cenário com uma luz modesta nos esperava. Não fosse o tapete persa ou indiano que destoava do universo criado sobre o palco, o ambiente onde os músicos executavam a precisa trilha, estava quase que completamente integrado à proposta cênica. Talvez me falte algum dado na leitura do tapete, aí eu peço sinceras desculpas pelo deslize.

Pela plateia entra uma bela índia, de presença impactante e voz vigorosa. Seu canto e sua chegada marcante seguram bem a plateia.

A cena no palco, no entanto, se enfraquece com a dificuldade de compreensão do texto falado pela atriz. O barulho do ar condicionado e a evidente diferença da voz de Maria Janaína quando está cantando para quando está falando, foram fazendo com que o espectador aos poucos fosse se perdendo da cena. Contudo, mesmo sem o apoio dos significados daqueles significantes, a cena mantinha a sedução. A luz muito delicada (e ao mesmo tempo forte) colaborava para a predominância dos signos visuais sobre as palavras ditas e pouco compreendidas pela plateia.

Victor Kizza - O homem-onça em foto de Aldren Lincoln

O impacto da cena completou-se com a entrada vigorosa do ator Victor Kizza, com uma presença de palco comovente. A princípio também pouco se entendia do que ele falava, mas uma vez mais a força da cena parecia prescindir desta premissa. A construção da personagem era tão intensa, que mesmo pouco entendendo daquele Português 'envenenado' que era lindamente dito por aquele ser da natureza, com formas ora humanas ora 'bichescas' a plateia ficava completamente encantada com aquele corpo escultural, construindo diante dos nossos olhos aquele ser híbrido, forte mas ao mesmo tempo dono de uma simpatia e de um carisma inusitados. Custo a acreditar que alguém tenha resistido àquele sorriso de menino naquele corpo de guerreiro.

Era tão preciosa a presença corporal de Victo Kizza que até mesmo seu suor derretendo a maquiagem era parte da magia da cena. A luz precisa de Everton Machado, dialogava com aquela construção e assim, entre  índia e onça, a cena foi-se desenvolvendo.

Talvez em alguns momentos, a plateia se pegasse querendo algo mais, mas acho que nunca é muito se dispor a receber aquilo que a cena tem para dar e aos poucos foi exatamente o que fui fazendo: permitindo-me deixar levar pela proposta. Fui sentindo e experimentando a cena nos detalhes de cada elemento que ela me oferecia, desde o mais simples som ao vivo (ou não) desde uma troca de luz até os detalhes das interpretações daqueles irmãos em cena.

Dirigidos pela mãe, filho e filha vão ao palco celebrar o hibridismo, a miscigenação deste povo tão negro-índio-luso. Assim, só podemos compreender Iauretê como um canto de louvor aos laços familiares que nos unem, quer sejam eles o de mãe e filhos, como nesta peça, quer seja o vínculo ontológico, antropológico, religioso e cultural que nos une a todos nós, filhos destes que aqui estavam, daqueles que aqui chegaram e mais aqueles que para cá foram trazidos. Uma celebração às nossas origens.

Um Guimarães Rosa trazido ao palco, traído pela dificuldade de compreensão do texto falado, mas emancipado na linguagem da cena, plena, bela e absoluta.

Minhas saudações ao Grupo de Teatro Palmares Iñaron e a seu importante e belo trabalho.

Confira o gostoso bate-papo com essa galera no DEZ MINUTOS COM, CLICANDO AQUI.



Iauretê - Grupo de Teatro Palmares Iñaron:

Direção e Adaptação: Lia Spósito
Direção Musical: Bira Reis
Orientação Artística: Antonio Jorge Godi
Elenco: Maria Janaína e Victor Kizza
Percussionistas: Alessandro Mônaco e Marcos Antonio Costa
Designer de Luz: Everton Machado 





quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

UMA BALEIA EM NOITE DE CHUVA – Vidas Secas em Vitória da Conquista


Há quase um ano que a região de Vitória da Conquista sofre com a pior estiagem dos últimos 30 anos. Além do racionamento, da alta dos preços na feira, da ‘vida seca’ que se impõe na zona rural, paira sobre a terra rachada uma tristeza de dar dó.

Mas é justamente numa semana de intensas chuvas que chega aos palcos de nossa cidade o espetáculo da Cia de Teatro Primeiro Ato, inspirado na obra de Graciliano Ramos, Vidas Secas. O espetáculo vem ‘a mando’ do projeto Verão Cênico, como os leitores já devem estar sabendo.

Mais uma noite de plateia lotada, mesmo com o tempo fechado. É uma lindeza ver esse teatro lotado toda quarta-feira, chova ou faça lua!

E vamos ao espetáculo. Logo de entrada o cenário simples nos dava o tom da encenação.

E como começou abruptamente o espetáculo hoje!!! Sem sinais, sem vinheta. Isso acabou por atrapalhar um pouco o começo do espetáculo. A plateia ainda conversava com empolgação quando a cena inicial já rolava, com uma projeção que tinha narração e que a gente não conseguiu acompanhar bem. Aos poucos – bem devagar – a plateia começou a silenciar, mas sobrou ainda aquele celular ligado e aquele povo, educado pela audiência de televisão que tem o péssimo hábito de ficar batendo papo atrás da gente, bem no meio do espetáculo. E acham que porque estão sussurrando, não estão incomodando. Incomoda, gente. Quer conversar? Não entra! Não se pode conversar, nem baixinho, numa sala de cinema ou numa sala de espetáculo. Ali é um espaço público e é imprescindível que você respeite o espaço do outro. Sala de espetáculo não é lugar para bater papo. E tenho dito!

Voltemos à cena.

O espetáculo dirigido por Devilles, mentor da Cia que há mais de vinte anos produz teatro no extremo norte da Bahia, apresenta uma sucessão bem trabalhada de elementos cênicos. Uma luz bem recortada, sem cor que ilustra a secura da vida daquelas personagens. Algumas vezes sinto que a luz antecipa a cena, mas na maioria das vezes ela ajuda a compor imagens fortes cuja estagnação dá o tom do espetáculo. Os cortes são precisos, a direção aparece cuidadosa e primorosa nas marcações das cenas e no diálogo entre os elementos essenciais.
Imagem disponível no blog da Cia

Apesar de gostar do espetáculo, não posso deixar de sinalizar que na transposição da obra literária para a obra cênica, sinto que a profundidade da construção das personagens, tanto cada uma delas em si mesma, quanto na relação entre elas, fica prejudicada. O problema maior parece estar na soberania da história contada, isso que chamamos em dramaturgia de fábula. Sim, estão presentes as personagens e as histórias vividas por elas, mas sinto falta do peso daquelas subjetividades, daquelas humanidades que são tão intensas no romance e que parecem um pouco mais superficiais no palco. Aí não saberia apontar se o problema está no trabalho dos atores, especificamente ou na direção destes. Helder Ferrari que dá vida ao Fabiano tem uma presença de cena inegável, no entanto reluz uma juventude que talvez não remeta ao Fabiano da minha distante leitura da obra original. Ronali Barbosa, apesar de demonstrar potencial, acaba por sombrear Sinhá Vitória com sua voz frágil. Mesmo que isso diminua o envolvimento da plateia com o espetáculo, quero deixar registrado que é visível o potencial dela e dos demais integrantes do elenco, que com a prática dos palcos, com certeza produzirão trabalhos de inegável qualidade.


Devilles ousa em cena ao trazer ao palco uma criança e uma cadela. Essa opção pode ser um problema ou um achado numa montagem e neste caso, considero que foi um achado. A cadela é uma diva. Não se assusta com a plateia, permanece em cena com uma tranqüilidade impressionante e comove com seu olhar de bicho, convocando a todos da plateia a ler aquela cachorra em cena. Não é à toa que ela se chama Baleia na vida real. E é isso que nos chama para dentro da cena: a Baleia verdadeira. Ruan Medrado e Wagner Libório também cativam pelo que são de verdade e vê-los em cena nos atrai e nos seduz. O diretor usa isso a seu favor, ou que o diga, em favor da cena.

Insisto na questão do aprofundamento das relações entre os personagens, porque acredito que seja algo que se consiga com mais estrada, com mais apresentações. A cena da morte de Baleia, eu me lembro que quando li fiquei quase um mês de luto, atravessada por aquela dor. Na peça acho que a cena foi desperdiçada, breve, simples. Talvez seja uma demanda minha especificamente, mas senti falta da dor de Fabiano – que na minha leitura sofre com a necessidade de matar a cachorra – a dor dos meninos. Senti falta do silêncio de Fabiano, de sua profundeza dura, mais do que de sua grosseria. Senti falta do vazio de Sinhá Vitória, de sua obsessão pela cama de tiras de couro. Em termos de enredo, estava tudo lá, mas faltaram as sensações profundas que essa história promove.

A cena final é uma preciosidade. Os quadros recortados pela luz dos personagens esvaziados pelo eterno ciclo das estiagens. Aquele silêncio ensurdecedor. Aquele tempo dilatado. Estes elementos sintetizam todo o sumo da obra literária e da obra cênica. Ficaria tranquilamente sem a projeção final. Para mim ,o peso do silêncio e a dor dos personagens me bastariam. (Pois, então, eu que dirigisse minha peça, né não? Eita povo pra se meter no trabalho dos outros. Eu sei de tudo isso, gente.)

E, não podemos deixar de sinalizar que Maria Bethânia cantando canções da seca é sempre uma dor profunda.

Que fique registrado, por fim, que estas palavras revelam todo o meu deleite e, sobretudo, respeito com a obra assistida. Obviamente eu poderia lançar mão do argumento mais fácil e hipócrita (e na minha opinião improdutivo) de que para uma peça do interior da Bahia está muito bom. Prefiro arriscar-me a comentar o espetáculo como ele merece ser comentado: como um espetáculo profissional, com carreira, temporadas e viagens. Prefiro fazer uma leitura sincera e legítima do uso dos códigos teatrais, dentro do que me é possível como espectadora e como estudiosa da linguagem. Acredito que essa é a forma mais honesta de dizer o quanto eu gostei de ter assistido a este espetáculo.

Outro dado que deve ser levado em consideração, sobretudo neste contexto, é o importante trabalho que o grupo realiza em sua região com montagens que visam à formação de plateia não só em Juazeiro como nas cidades vizinhas. O grupo tem um relevante trabalho de arte-educação, construindo e circulando espetáculos que são transposições de obras literárias. Vidas Secas, por exemplo, é o último espetáculo da trilogia da seca, composta também pelos espetáculos O Quinze, inspirado na obra de Raquel de Queiroz e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. 

Adaptação da Cia 1º Ato para O Quinze de Rachel de Queiróz

Encenação de Morte e Vida Severina - poema dramático de João Cabral de Melo Neto

Uma vigorosa produção sobre a temática da seca, a partir de autores que conhecem de perto esta realidade, encenada por artistas também acostumados às dores da seca que encontraram nesta experiência um instrumento de diálogo com o público local. Inteligente e sagaz estratégia de sobrevivência. Podemos observar no blog da Cia 1º Ato o que se vê em cena: que existe um importante trabalho com jovens atores da cidade e região.

Pois então. Estou aguardando fotos da sessão de ontem para ilustrar melhor este post. Fiquem com um bate-papo que essa trupe simpática e batalhadora teve com a gente no nosso DEZ MINUTOS COM... clicando aqui.

E, nunca é demais lembrar, comente à vontade. O que mais vale, no blog, no teatro, no boteco e na vida é bater um bom papo e trocar uma ideia. Sinta-se em casa!

Arte do Espectador saúda Baleia - Foto Hannah Abnner

Cia 1º Ato e equipe do Centro de Cultura Camilo de Jesus Lima - Foto Hannah Abnner

E por falar em casa, já está sabendo da novidade? Clique e conheça o projeto TEATRO-ESCOLA CASA DO REBANHO.

FICHA TÉCNICA:

VIDAS SECAS
Adaptação do Romance homônimo de Graciliano Ramos
Adaptação: Antônio Carlos dos Santos
Direção: Devilles
ELENCO:
Helder Ferrari
Ronali Barbosa
Ruan Medrado
Wagner Libório
Davi Monteiro
Maurício Fábio




quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A faca e o corte: de que trata, afinal, o Circo de Soleinildo?

Texto elaborado a quatro mãos, por Adriana Amorim e Hannah Abnner.
Fotos produzidas e gentilmente cedidas por: Erica Daniela

Parte da fila para entrar - ESTREIA DO PROJETO VERÃO CÊNICO/2013

A acomodação da plateia levou quase uma hora
Ontem foi a estreia da edição 2013 do projeto da FUNCEB (Fundação Cultural do Estado da Bahia) órgão da Secretaria de Cultura, VERÃO CÊNICO. Diferente da edição do ano passado, quando a adesão do público parece ter sido baixa, a repercussão dessa nova edição desde o começo do mês já dava sinais de que seria um evento bem sucedido.

Não sei como foi nas outras cidades, mas aqui em Conquista, sucesso é pouco para definir esta abertura.

O saguão do Centro de Cultura Camilo de Jesus Lima estava completamente tomado por um público majoritariamente jovem, organizado em duas filas que faziam lindas e sugestivas curvas tanto para a compra do bilhete (R$ 1,00 a inteira e 0,50 a meia) e outra para entrar. Já dali se via um belo espetáculo.

A cena era ainda mais bela posto que ao fundo, nas paredes do Centro, as lindas pinturas de J. Murilo a partir do universo de Guimarães Rosa preenchiam nossos olhos e almas. Lindas pinturas em tela, em madeira e umas mais lindas ainda numas molduras de janelas antigas que eu enlouqueci de deleite.

Do lado de fora um lindo mural em papel metro, desenhado com carvão, eu acho, lindo demais. Umas das belas obras do artista plástico Arisson Sena, autor também  do Rola-bosta que fica no jardim do Centro de Cultura.(aguardando o nome das obras).

Completavam a cena a presença do próprio Camilo de Jesus Lima (interpretado por ator local) e duas personagens que não sei se devo chamar de travestis ou Drag Queens, mas uma delícia de mestres de cerimônias. Enfim, uma festa sempre completada pelo vendedor de cachaça e o tiozinho das balas.

Na entrada uma coisa de gente! Cadeiras extras pra lá e pra cá. Muita gente transgredindo as fitas que isolavam as cadeiras de onde não se teria um visão boa da peça. Invasão da área central, onde, colado ao palco foi montado o cenário (o espetáculo desceu, recusando usar o distante palco principal). De novo, uma festa!

Mas, vamos ao espetáculo?
E esse não é um convite à toa. Não no caso desta peça. O Circo de Soleinildo é daquelas obras que de tão simples, mas de tão simples, a gente pára e quase nem respira. Sabe aquelas obras que a gente sente que nos melhoram como pessoa? Aquela que a gente pensa, como não haviam feito isso antes? O Circo... é assim.



E em sua metalinguagem O Circo de Soleinildo fala mais, muito mais do que da vida de artista. Porque eu, honestamente, acho que o artista é um extrato pleno e vigoroso do ser humano. A gente representa o exagero de tudo aquilo que todo mundo tem, mas a gente assume, a gente aumenta, a gente estrangula ao máximo tudo o que passa por nós.

A dor e a solidão, a insegurança, a tristeza, a dúvida, a vontade de continuar, o medo de parar, aquele sentimento de 'e agora?' esses sentimentos todos são de todos nós, mas o artista, sempre em sua vida e em sua obra, os viverá intensa e declaradamente.

Tentando diminuir a tristeza de Solenildo
É tanta coisa para se dizer deste espetáculo que eu vou pular as partes sobre as quais muito já se falou. Eu não vou falar que o texto dramático é primoroso, que a encenação é irretocável, que os elementos de cena são todos de uma delicadeza e qualidade estética que nos envolve sem possibilidade de volta. Também não vou falar da simplicidade e do primor do trabalho dos atores, no ponto, envolvidos, íntimos em seu conjunto. Posso também abrir mão de dizer que Sérgio e Shirley optam por uma direção limpa e delicada, simples e contundente, muito, muito arriscada, que só se completa por conta da intimidade que o elenco desenvolveu.

E já que (não) estou falando do elenco, me permitam os homens (ótimos atores) fazer um revelação: Soleinildo é mulher! Calma, calma, eu não estou falando aqui ingenuamente, como se ninguém soubesse, que Soleinildo é interpretado por uma atriz.

Isac Flores com expressiva tristeza e fragilidade
Eu estou dizendo que o espetáculo (e tudo o que ele representa) é delas. É elas! E os atores, brilhantemente parecem entender isso e em cena estão ali a serviço delas. Assim, Cristiano Martins e Isac Flores fazem um primoroso trabalho de delicadeza e de companheirismo. Irreparável. Aqui, delicados são os homens! E isso é lindo demais!

Shirley Ferreira é uma coisa! Uma diva! Eu já havia assistido ao espetáculo no Festival da Juventude na Praça Barão do Rio Branco em Conquista no ano passado com outra atriz, Iara Barbosa, também muito boa, mas que trazia uma leveza à personagem. Ria-se das mesmas cenas com Iara Barbosa, sem tanto pesar e dor quanto se ri das cenas supostamente cômicas com Shirley Ferreira. Em cena, essa atriz brilhante (eu não tenho nenhum pudor em dizer isso) transformada pela maquiagem e pelo figurino é o próprio peso da solidão e da experiência. Cada cena sua, cada gesto é de fazer chorar. Seu olhar afunda a gente e a peça nos trespassa sem chance de dizermos NÃO!.

Shirley Ferreira em cena. Aguenta coração!

Que mulher é essa que olha pra gente e a gente congela? Que abre a boa e a terra treme? Eu realmente não tenho códigos para decifrar Shirley Ferreira! Só sei sentí-la!

Kécia Prado dá vida a Solenildo

E o monstrinho é esse que faz Soleinildo? Olhando desavisadamente, Kécia Prado parece pequena, frágil, um sorriso de menina. Mas a danada abre a boca e sai de baixo. Um vozerão que nem Soleinildo teria, se falasse. E essa ambiguidade de menina e leão é fundamental para a construção daquele patriarca do circo, daquela figura altiva e frágil ao mesmo tempo, para quem a família de atores dedica todo seu carinho, toda sua preocupação e devoção. O solo do personagem com capote (aquela alma sem corpo), diante da imóvel plateia construída pelos amigos fiéis é de matar um do coração. Um simples número de palhaço, já conhecido até, se torna um momento de puro enlevo.




A descoberta da cruel realidade e a revelação da aparentemente ingênua brincadeira com o Cirque du Soleil também é rápida, mas dolorosa. O ator que volta para reconstituir o nome original da trupe, toca tão silenciosamente em nossa vaidade porque nos diz em alto e bom som: 'seremos, sim, o que somos, custe o que custar'.

Esse espetáculo lembra, e foi Hannah, parceira de análise, que se deu conta, o filme de animação O Mágico, de Sylvain Chomet, mesmo realizador de As Bicicletas de Beleville. Esta obra, como a peça da Operakata, trata lindamente, apesar da crueldade encerrada em ambas, da vida do artista, da crueldade do mercado e da nossa incapacidade de viver sem isso.



Cristiano Martins e Shirley Ferreira na emblemática cena do atirador de facas
Para encerrar esse post imenso que eu não consigo terminar nunca, quero voltar-me à imagem da faca, por ser um número emblemático, muito engraçado, que reúne tensão, graça, revelação, mímese, enfim, todos os elementos que estão na obra como um todo. Mas não só por isso. Quero acessar a imagem da faca, do corte, da facada que levamos dia após dia, quer sejamos trabalhadores do palco ou do escritório. Quero falar das tantas farsas que produzimos na vida, de como forjamos números, de como fazemos cena. E essas tapeações que promovemos para os outros e na maioria das vezes para nós mesmos, ah, como elas são frágeis e num espirro se revelam.

Esse público que nunca vem, não é só para os artistas. A decisão entre ceder às demandas de fora e responder aos impulsos internos, eu insisto, não é só de artistas. Quantos bancários, secretárias, professoras, balconistas, domésticas, médicos, motoristas, advogados, abriram mão de suas verdadeiras aspirações para se render a uma vida que lhe garantiram ser melhor do que aquela que eles sentiam pulsar lá dentro. Ai, que isso tá ficando cafona, mas eu só consigo ver por estes olhos, o espetáculo.

O grupo pode ter feito um espetáculo que fala de artistas, mas sem saber (o que eu duvido muito) falou de todos e de cada um de nós que senta naquela plateia, artista ou não, e se vê em Soleinildo ou em cada um daquela frágil mas indestrutível trupe.

E se disserem "Nossa tanto de um espetáculo tão curto!" eu só posso responder:

Curta, é a vida, meu amigo! Curta é a vida!

Hannah Abnner registra bate-bapo da Operakata com o Arte do Espectador

Depois do espetáculo a trupe nos recebeu e conversamos sobre teatro, formação de plateia, sobre a trajetória bem sucedida do Soleinildo e, claro, sobre as recentes polêmicas envolvendo o II FESTIVAL DE CENAS CURTAS que aconteceu no final do ano passado e teve grande repercussão aqui no blog, você deve ter acompanhado. Confira esse delicioso bate papo-com a Operakata na retomada do nosso DEZ MINUTOS COM...clicando aqui.

E também a palavra da plateia com a volta do GOL DO ESPETÁCULO clicando aqui.

Comentários são sempre bem-vindos!

Gracias a la vida. Que nos ai dado tanto!

O CIRCO DE SOLEINILDO
TEXTO: Gilsérgio Botelho
DIREÇÃO: Gilsérgio Botelho e Shirley Ferreira
ELENCO: Kécia Prado, Cristiano Martins, Isac Flores e Shirley Ferreira
DESENHO DE LUZ: Raiza Lélis e Wandick Trindade
CENOGRAFIA: Gilsérgio Botelho
FIGURINO: Kécia Prado
PRODUÇÃO: Kétia Prado Damasceno